75 anos após a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Ricardo Changala reflete sobre a realidade atual. Ele destaca eventos recentes, como a crise na Palestina, a libertação de um ex-presidente peruano condenado por violações de direitos humanos e a posse como presidente na Argentina de alguém que se opõe aos direitos humanos. Changala destaca a importância de colocar as pessoas e seus direitos no centro das políticas, reconhecendo que a proteção e a promoção dos direitos humanos continuam sendo fundamentais, mesmo que seja necessária uma reconfiguração para se adaptar aos desafios atuais.
Isso não é uma broca. – Roger Waters
Em 10 de dezembro de 2023, completam-se 75 anos da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No documento histórico, fundamentava-se a sua adoção assinalando que:
“O desconhecimento e o menosprezo pelos direitos do homem originaram atos de barbárie ultrajantes para a consciência da humanidade; e que se proclamou, como a aspiração mais elevada do homem, o advento de um mundo em que os seres humanos, libertos do temor e da miséria, gozem da liberdade de palavra e da liberdade de crenças”.
E também que:
“A liberdade, a justiça e a paz no mundo têm por base o reconhecimento da dignidade intrínseca e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana.”
Infelizmente, o contexto mundial atual mostra que estamos longe, muito longe de alcançar essas aspirações.
Vejamos apenas alguns fatos recentes.
Pela primeira vez, assistimos a um massacre transmitido por streaming, sem que a comunidade internacional consiga detê-lo.
Em 6 de dezembro, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, dirigiu-se ao Conselho de Segurança invocando, pela primeira vez desde que assumiu o cargo, o artigo 99 da Carta das Nações Unidas, instando-lo a agir diante da ameaça à segurança internacional apresentada pelo conflito palestino-israelense.
Guterres expressou que a situação está se deteriorando rapidamente em uma catástrofe com implicações potencialmente irreversíveis para os palestinos como um todo e para a paz e a segurança na região.
O Escritório de Coordenação de Ajuda Humanitária da ONU (OCHA) informou que, em 5 de dezembro, pelo menos 15.523 palestinos morreram em Gaza sob os bombardeios israelenses, dos quais 70% são mulheres e crianças. Muitos, além disso, estão desaparecidos, presumivelmente sob os escombros dos edifícios bombardeados, à espera de serem resgatados ou recuperados.
Segundo a agência da ONU para os refugiados palestinos (UNRARA), quase 1,9 milhão de pessoas, mais de 85% da população de Gaza, foram deslocadas em toda a faixa desde 7 de outubro.
Guterres afirmou que não há proteção para os civis.
Mais da metade das casas foram destruídas e cerca de 80% da população de 2,2 milhões foi forçada a se deslocar para áreas cada vez menores; os restos explosivos dos bombardeios israelenses deixam áreas inabitáveis, enquanto o deslocamento em massa criou condições de superlotação, indignas e anti-higiênicas.
Em sua carta ao Conselho de Segurança, o secretário-geral afirma que a comunidade internacional tem a responsabilidade de usar toda a sua influência para evitar uma maior escalada e pôr fim a esta crise e também reiterou seu apelo para que um cessar-fogo humanitário seja declarado, para que os meios de sobrevivência e a ajuda humanitária possam ser entregues de forma segura e oportuna em toda a faixa de Gaza.
Paralelamente, no Peru, por decisão do Tribunal Constitucional de 4 de dezembro, foi ordenada a imediata liberdade do ex-presidente Alberto Fujimori, que cumpria sentença por graves violações de direitos humanos ocorridas durante seu mandato de 1990 a 2000.
Diante da solicitação das vítimas, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, através de resolução urgente de seu presidente, exortou novamente o Estado peruano a abster-se de implementar a ordem de libertação disposta até que se comprove se a sentença cumpre com as garantias de acesso à justiça das vítimas dos massacres de Barrios Altos e La Cantuta.
A situação é duplamente grave, uma vez que não só deixa desprotegidas muitas vítimas de violações dos direitos humanos fundamentais, como também implica um desconhecimento dos resolvidos pelo principal órgão jurisdicional regional.
10 de dezembro é o Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Paradoxalmente, nesse mesmo dia, na Argentina, assumirá como presidente da República Javier Milei, que se declarou em múltiplas oportunidades contrário aos direitos humanos em todas as suas expressões.
Se o presidente eleito e seu grupo político cumprirem a quarta parte de seus anúncios, o país entrará em uma etapa regressiva em matéria de direitos humanos com consequências altamente negativas para a população, especialmente para os setores com menores recursos, as vítimas da ditadura militar, as mulheres, os povos indígenas, para as pessoas trabalhadoras, entre outros.
Diante de um panorama tão pouco encorajador, seria útil que os Estados levassem em conta, pelo menos, o que diz o artigo final da declaração de 1948:
“Nada na presente Declaração poderá ser interpretado no sentido de que confere direito algum ao Estado, a um grupo ou a uma pessoa, para empreender e desenvolver atividades ou realizar atos tendentes à supressão de qualquer dos direitos e liberdades proclamados nesta Declaração”.
Porque falamos de pessoas de carne e osso, de homens, mulheres, meninas e meninos. Trata-se do planeta Terra em vias de destruição, ainda que a banalização ou o silêncio cúmplice que pretende esconder realidades tente nos pintar um mundo