Em 27 de dezembro, o presidente argentino enviou à Câmara dos Deputados o projeto de “Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade de todos os Argentinos”, no qual solicita a declaração de emergência pública em diversos setores, como o econômico, financeiro, fiscal, previdenciário, segurança, defesa, tarifário, energético, de saúde, administrativo e social, até 31 de dezembro de 2025.
A declaração de emergência solicitada implica a delegação de faculdades legislativas ao Poder Executivo nesses domínios (que podem ser estendidas até o final de 2027), abrangendo praticamente todos os aspectos relevantes para um país.
Além disso, a iniciativa estabelece que: “As normas aprovadas no exercício desta delegação serão permanentes, exceto quando a natureza da medida determine seu caráter transitório, e assim o disponha de forma expressa”.
O projeto de lei, composto por 664 artigos, contém uma consideração de motivos, onde afirma que o país está imerso em uma grave crise econômica, financeira, fiscal, social, previdenciária, de segurança, defesa, tarifária, energética, de saúde e social sem precedentes, como consequência de “ter abandonado o modelo da Democracia Liberal e da Economia de Mercado, presente em nossa Constituição de 1853…”
O projeto de lei acrescenta ao Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) 70/2023 e aos anúncios feitos pelo Ministro da Economia em 12 de dezembro, formando uma trilogia de decisões presidenciais que buscam modificar profundamente a realidade nacional. Conforme o próprio presidente afirmou em seu discurso de posse, isso acarretará graves sofrimentos para a maior parte da população.
No mesmo dia 27 de dezembro, do outro lado do Rio da Prata, a Corte Eleitoral habilitou a criação de um novo partido político, o Partido Liberal do Uruguai, fundado por simpatizantes do presidente argentino, Javier Milei, que se apresentou como a única opção eleitoral uruguaia comprometida com as ideias de liberdade.
Parece que as ideias de Milei e seu partido não apenas governam a Argentina, mas também estendem sua influência na região. Portanto, é relevante analisar os fundamentos conceituais invocados ao promover este primeiro projeto de lei que busca modificar totalmente a estrutura institucional e o sistema político argentino.
O projeto de lei, assim como o discurso presidencial de 10 de dezembro, reitera a invocação da Constituição de 1853 como a principal referência institucional para promover as mudanças desejadas: “Com o espírito de restituir a ordem econômica e social, baseada na doutrina liberal plasmada na Constituição Nacional de 1853, apresentamos ao Honorable Congresso da Nação o anexo projeto de lei… em nome da Revolução de Maio de 1810, e em defesa da vida, da liberdade e da propriedade de todos os argentinos”.
É incomum que um presidente envie uma iniciativa de lei invocando um texto constitucional que não seja o vigente em seu país, que este último nem sequer seja mencionado e que, além disso, se limite a se comprometer a defender apenas três direitos: a vida, a liberdade e a propriedade (dos argentinos, por sinal, não de todas as pessoas que vivem no país).
O objetivo restaurador é evidente e explícito. A ideia do atual governo é encaminhar o país para o Século XIX, sobre a base dos valores que governavam ou incidiam nas decisões políticas e sociais daquela época.
Há outro aspecto que não pode deixar de ser considerado nesta breve análise. O título da iniciativa de lei é retirado do texto mais importante de Juan Bautista Alberdi, o documento “Bases e Pontos de Partida para a Organização Política da República Argentina”, escrito em 1852 e considerado o insumo conceitual mais importante da Argentina no ano seguinte.
Embora o contexto daquela época fosse muito diferente do atual, já que, segundo sustenta o atual governo argentino, o principal problema nacional é a dívida pública, enquanto para Alberdi, o desafio fundamental era a falta de população (“Na América governar é povoar”), a explícita referência presidencial a este autor e à época nos leva a retomar alguns dos postulados de Alberdi.
Depois de analisar várias constituições do continente americano, Alberdi prefere a chilena, em especial, porque projeta um Poder Executivo com elasticidade do poder encarregado de fazer cumprir a constituição, com “um presidente que possa assumir os poderes de um rei no instante em que a anarquia o tenha como presidente republicano”. Alberdi reforça a ideia ao expressar: “Eu não vejo por que, em certos casos, não possam ser conferidas faculdades onipotentes para vencer o atraso e a pobreza…”, porque “as reformas das leis civis e comerciais, e em geral todos os trabalhos que, pela sua extensão considerável, o técnico das matérias e a necessidade de unidade em seu planejamento e execução, se desempenham melhor e mais rapidamente por poucas mãos competentes do que por muitas e mal preparadas”.
O extenso DNU e esta iniciativa de lei, que buscam eliminar as funções essenciais do Poder Legislativo por pelo menos dois anos para concentrá-las no Poder Executivo, parecem inspirar-se nessas ideias de Alberdi há mais de 170 anos.
Recentemente, em uma entrevista televisiva, o presidente disse que o Congresso é muito lento e alguns deputados são corruptos, preparando o caminho para o projeto de lei que atribui funções legislativas ao Poder Executivo.
O texto de Alberdi que estamos comentando termina com sua proposta de constituição que inclui, em seu Capítulo II, “Direito Público Argentino”, os direitos que são garantidos. São quatro direitos: a liberdade, a igualdade, a propriedade privada, que se considera inviolável, e a segurança para não ser condenado sem julgamento justo.
Justamente, os três primeiros são direitos que o presidente invoca na justificação do projeto de 27 de dezembro, apesar de que, até mesmo a Constituição de 1853, prevê outros direitos como a liberdade de culto, de trabalho, indústria, navegação, comércio ou expressão de ideias.
Será necessário analisar em detalhe o alcance dos 664 artigos do projeto de lei, mas apenas vendo sua inspiração, claramente é preocupante e com consequências imprevisíveis no momento.
Em pleno século XXI, um governante pretende regressar ao seu país na segunda metade do século XIX, não de maneira pontual, mas em suas “bases” e institucionalidade, a partir de um diagnóstico mais que discutível de extrema emergência em todos os domínios da vida social e política, que em muitos aspectos se apoia em dados objetivamente falsos.
Além disso, promove, a partir da lógica da inutilidade do debate de ideias diante de situações complexas, ou seja, frente a um problema importante, a democracia não serve; só pode funcionar o autoritarismo. Por isso, aprovou o DNU e, pela mesma razão, pretende governar sem o Congresso, pelo menos durante dois anos.
Sem o Congresso e, aparentemente, também desrespeitando grande parte da Constituição existente, por exemplo, em termos do conjunto de direitos que a Carta Magna reconhece e determina que devem ser protegidos.