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A Insegurança Alimentar na Comarca Ngöbe Buglé e as Linguagens do Déficit

09 maio, 2025

Jon Subinas[1]

A segurança alimentar costuma ser entendida como uma situação em que há acesso suficiente a alimentos para uma vida saudável. No entanto, no caso das comunidades indígenas, a alimentação está profundamente vinculada à dimensão cultural, referindo-se à importância dos valores, das tradições e dos saberes ancestrais na produção, distribuição e consumo de alimentos.
Essa dimensão frequentemente é desconsiderada, gerando problemas de falta de reconhecimento e até mesmo discursos e linguagens de déficit, que descrevem apenas as carências alimentares das comunidades sem contabilizar suas contribuições.
A partir de uma análise de conteúdo de documentos públicos sobre Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), realizada pelo projeto “Conhecimento Ecológico Tradicional para a Segurança Alimentar e Nutricional: Inovação e Conservação” (financiado pelo consórcio IDRC-CSUCA), foram identificados elementos que reproduzem esse diagnóstico na Comarca Ngäbe Buglé.
Dessa forma, é fundamental articular uma política de reconhecimento efetivo das formas tradicionais de alimentação, não apenas no aspecto cultural e simbólico, mas também nos âmbitos econômico e político, como uma oportunidade de melhoria e desenvolvimento das comunidades por meio de uma nova forma de relação com os povos indígenas que habitam territórios ancestrais.
Esses discursos do déficit, segundo a terminologia do psicólogo norte-americano K.J. Gergen, mantêm as populações indígenas em uma posição de subalternidade permanente, dificultando a formulação de políticas públicas que ultrapassem o assistencialismo, o que acaba por retirar a agência das comunidades, tratando-as exclusivamente como receptoras passivas de ajuda, ou seja, como sujeitos do déficit.
Os territórios indígenas no Panamá enfrentam muitas carências materiais, privações e apresentam as taxas mais elevadas de insegurança alimentar do país; entretanto, também possuem formas ancestrais de alimentação que são nutritivas, ecológicas e culturalmente adequadas, mas que estão ameaçadas por poderosas cadeias de comercialização que incentivam o consumo de alimentos processados, açucarados e ricos em gorduras.
A população residente na Comarca Ngäbe Buglé depende em grande parte da agricultura de subsistência, baseada em uma economia nem sempre mediada pela moeda.
As comunidades também dispõem de bens públicos dificilmente traduzíveis em termos monetários, como as terras coletivas (fruto de uma concessão flexível de usufruto da terra por parte do Estado), além de conhecimentos e modos de vida tradicionais e comunitários.
A não contabilização desses bens públicos como ativos comunitários, somada à contabilização exclusiva das carências e privações, leva a que essa população seja concebida apenas como sujeito de necessidade, sem que se considerem suas contribuições, capacidades e potencialidades.
Existem iniciativas locais de conservação e recuperação da alimentação autóctone e tradicional, nas quais as mulheres desempenham um papel central.
Embora algumas sejam apoiadas por empreendedores, deveriam contar com respaldo suficiente do setor público, que as promovesse e facilitasse.
Entre essas iniciativas, destaca-se o projeto “Ari Ugüenrien” (que significa “vamos cozinhar juntos” em ngäbere), liderado por mulheres da comunidade de Río Caña, no distrito de Kusapin, com o objetivo de resgatar conhecimentos ancestrais e valorizar os ingredientes locais.
Outro exemplo é o projeto “Kätogwä bro nire – Kätogwä bro deme” (“As florestas estão vivas – As florestas são sagradas” em ngäbere), desenvolvido nas comunidades de Bababotdä, Öbabitdi e Sebliti, que, por meio de técnicas inovadoras no cultivo do feijão nativo, atua em florestas secundárias sem o uso de fungicidas, herbicidas ou inseticidas, buscando fortalecer a sustentabilidade ecológica e a segurança alimentar.
A pesquisa também revelou que, embora a gastronomia ngäbe não seja reconhecida oficialmente no Panamá, ela conta com o apoio e o interesse de chefs renomados, tanto nacionais quanto internacionais.
Dois exemplos notáveis são o restaurante Maito, no Panamá, e o restaurante Can Roca, em Roses, no norte da Espanha. O Can Roca, premiado com várias estrelas Michelin e dedicado à pesquisa e à inovação, vem estudando as propriedades e a qualidade do cacau orgânico ngäbe.
O reconhecimento por parte desses especialistas em artes culinárias deveria encontrar correspondência nas políticas alimentares panamenhas.
É fundamental evitar a reprodução de representações do indígena como uma cultura do déficit, definida exclusivamente por suas carências e privações. Igualmente, é necessário evitar versões idealizadas que retratem o indígena como uma cultura virtuosa, originária e natural.
Diferentemente das narrativas mais comuns, centradas nas carências e na passividade das populações indígenas, essas comunidades também possuem ativos, saberes e conhecimentos que oferecem soluções e alternativas tanto para o seu contexto imediato quanto para a conjuntura geral.

[1] Doutor em Sociologia e Antropologia, atualmente pesquisador do Centro Internacional de Estudos Políticos e Sociais (CIEPS), com atuação em pesquisa social aplicada, tanto qualitativa quanto quantitativa, e coordenador das pesquisas do CIEPS.