A consulta popular realizada em 21 de abril no Equador foi um recurso ao qual recorreram os últimos governos reacionários. Embora se possa pensar que é um instrumento democrático, a forma como a direita as impulsiona é o contrário: não partem de uma demanda popular pelas perguntas; o engano através das mesmas é a característica básica; não se realizam a favor das maiorias, mas dos poucos que ostentam a riqueza e o poder; em oposição a princípios constitucionais, pretendem regressão nos direitos populares; a campanha, incluindo a dos grandes meios de comunicação, é totalmente desequilibrada insistindo que a direita tem razão; estão repletas de perguntas que se supõem comentadas e de ampla aceitação, para ocultar as que realmente importam e se referem aos lucros dos grandes empresários; tampouco tratam do fortalecimento da soberania como país independente, mas da ampliação das cadeias imperialistas.
Desta forma, mais uma vez a direita perverte a democracia. Transforma-a num circo, num manipulado concurso de palavras e até numa sangrenta repressão, segundo os seus próprios interesses. A palavra “povo” é apenas um adorno como sempre foram os chamados aos escravos para defender seu mestre. A democracia, como quando nos falam de seu nascimento na Grécia, é apenas para poucos.
Foi assim que se apresentou a consulta convocada pelo presidente Noboa, que incluía perguntas de referendo para emendar a Constituição e outras de consulta popular para mudar leis. O fez em um contexto de maior presença da Internacional de reacionários, pretendendo aproveitar a angústia que vem da violência criminosa graças à qual decretou uma “guerra interna” que inclui aqueles que defendem seus territórios das transnacionais extrativistas, e a colocou como uma espécie de respaldo à sua reeleição, verdadeiro interesse para concentrar em um grupo econômico e monopolista o poder a mais longo prazo.
A consulta não é sobre a orientação do Estado, sobre o neoliberalismo e seus efeitos, as políticas econômicas e a crise energética, não sobre a vergonhosa política internacional que inclui a ausência de crítica ao genocídio em Gaza ou o desprezo por parte da legislação internacional, que se observou no ataque à Embaixada do México. Sobre temas como esses, simplesmente não se autoriza opinar aos de baixo.
Perguntas em síntese
Pode-se agrupar as perguntas apresentadas em três grupos: as que não eram necessárias porque existem leis que já cumprem o que foi consultado; as que poderiam não ser consultadas porque já existem leis nesse sentido que são debatidas na Assembleia; e as que são de maior importância por mudar a Constituição para ampliar os lucros empresariais e colocar o país aos pés das arbitragens internacionais.
Entre as primeiras estão parte das perguntas mais difundidas às quais se supõe que se deve apoiar para acabar com o narcotráfico e sua entrada em todas as instituições do Estado. Fazemos referência à pergunta para permitir que as Forças Armadas intervenham, junto à polícia, na segurança interna, coisa que já vêm fazendo sem que se debata sobre a doutrina do “inimigo interno” e dos riscos de militarizar a segurança, visão ademais muito perigosa para populações empobrecidas e limitadas para encontrar soluções. O mesmo é a questão para o controle de armas, o que já é executado legalmente pelas Forças Armadas.
Entre as segundas estão as perguntas que correspondem ao chamado “populismo penal” que pretende uma maior reivindicação pública, embora não haja evidências que isso reduza a delinquência e seus efeitos: propõe-se aumentar penas, estabelecer sentenças sem redução de penas, impossibilitando a reabilitação que também não existe, ou entregar às forças da ordem as armas capturadas à delinquência. Também se propõe uma emenda constitucional para permitir a extradição de certos condenados, o que falsamente se propõe como expulsar do país todos os delinquentes. Vale lembrar que nesses temas Noboa se soma à linha de Bukele, anuncia prisões semelhantes às salvadorenhas e se apresenta como em guerra contra o crime.
A esses temas, na consulta se soma uma referente a debates parlamentares em curso para a extinção do domínio sobre suas propriedades aos acusados por terrorismo e corrupção, assim como outra sobre uma resolução da Corte Constitucional e permitir-se reformar as garantias constitucionais para impedir seu abuso (na realidade, um mau uso), freando ultrajantes ordens de liberdade para criminosos de peso econômico ou político. Estas duas, sendo temas importantes, devem ser entendidas no marco do populismo penal, das lutas entre gangues ao mais alto nível e do risco de mau uso.
Em todo caso, as perguntas anteriores se apresentaram principalmente como se fossem o caminho para enfrentar a crise de segurança, a angústia de uma cidadania que sente o crescente controle do narcotráfico sobre os distintos organismos de Estado e que sofre os resultados da violência cotidiana e multifacetada. Com isso, o governo buscava uma vitória para apresentar como apoio popular à sua gestão geral e à sua reeleição.
Mas há duas perguntas que se relacionam com mudanças nas condições de vida do país e seu povo e sobre as quais colocaram o centro de sua atenção organizações populares e partidos de esquerda. As mudanças constitucionais pretendidas referem-se, primeiro (pergunta D), A Auto-obrigar o Equador a submeter-se aos organismos de arbitragem internacional, afetando a soberania nacional e os direitos do país e criando maiores garantias para o capital transnacional com o qual estão ligados os grandes grupos monopolistas. E, a segunda pergunta (A e), a aprofundar a precaridade laboral legalizando formas de trabalho por horas, pisoteando nos fatos os distintos direitos laborais. Uma pergunta dirigida a provocar maiores ganhos patronais ao não reconhecer direitos como a filiação à seguridade social e, ao mesmo tempo, a redução salarial massiva.
Os resultados da consulta
Após uma campanha oficial que evitou o debate, mantendo uma difusão reduzida a nível social, o verdadeiro sentido das perguntas e seus anexos ficou fora do conhecimento de uma porcentagem muito alta de eleitores. Os grandes meios de comunicação, comprometidos no respaldo ao regime, procederam da mesma maneira, insistindo em uma única opção: o voto pelo sim.
As primeiras informações, de uma pesquisa exit poll contratada pelo governo e da contagem rápida do Conselho Nacional Eleitoral, já assinalam uma clara votação positiva superior a 60% a favor das perguntas nas quais se oferece maior luta contra o crime organizado e segurança e que estão também ligadas à rejeição popular da corrupção nas altas esferas. Nas duas questões fundamentais, no entanto, a opção pelo não ganha e supera os 60%, com mais de 25% acima do proposto pelo governo. Além disso, a abstenção estaria próxima de 28%, embora no Equador O voto seja obrigatório.
Nestas condições, fica demonstrado que o povo equatoriano não confia no governo de Noboa. Nas perguntas que se pretendeu a aplicação de políticas neoliberais e que, pela campanha das organizações populares foram as mais discutidas e analisadas, a derrota da direita e seu governo é muito séria. Diante delas, a campanha governamental também foi carregada de mensagens falsas e ofertas de sair da crise, mas não convenceu. Com recursos infinitamente menores, as organizações populares conseguiram uma vitória sobre a mentira e o engano, sobre o modelo neoliberal e seu receitário.
A desconfiança vem como resultado das políticas governamentais implementadas, embora Noboa pretenda não ser de extrema direita apesar de pertencer ao maior grupo econômico e procura impulsionar um populismo que lhe permita reeleger-se. No entanto, o povo rejeita a inoperância que obriga a suspensões trabalhistas pelo corte energético, a ausência de obra pública necessária, o aumento do IVA de 12% para 15% com a consequente elevação de preços, a crise educativa e da saúde, a incapacidade de frear a violência inclusive com a presença dos militares nas ruas, atrasos nos pagamentos aos municípios, que não se pague 88 milhões de dólares que o Grupo Noboa deve por impostos, entre outras evidências do que realmente é este governo. Embora não fossem questões centrais na decisão do voto, elas certamente estavam presentes no pensamento de um alto número de eleitores.
Por outro lado, o Acordo de governabilidade entre Noboa, Correa e Nebot (extrema direita), que até recentemente funcionava a nível parlamentar, está quebrado após a invasão da Embaixada do México e a captura de Glas, gerando maiores dificuldades legislativas. É também notória a sua ausência de capacidade de diálogo e negociação política. O governo também enfraquece.
Nestas circunstâncias, a vitória social nas questões mais importantes muda o cenário político e abre as possibilidades de um reforço das posições contrárias ao neoliberalismo e favoráveis aos direitos populares. A unidade se apresenta possível e necessária para enfrentar as contradições atuais e as que vêm em curto prazo. Diante de um governo que se enfraquece, o resultado da consulta fala de um povo que pode orientar-se adequadamente nos temas fundamentais e que requer ratificar este resultado reforçando a tendência para a esquerda e a mudança verdadeira.
* Acadêmico e ex-ministro do Meio Ambiente do Equador. Associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE, www.estrategia.la)