Hoje, 3 de fevereiro do ano de 2024, há 35 anos que caiu o tirano Stroessner, e nós devemos prestar homenagem a todas as suas vítimas, não apenas relembrando o passado, mas analisando como estamos no presente e, começando, de uma vez por todas, a discutir seriamente o futuro de nosso país.
Nem o esquecimento nem perdão a toda essa opressão, a tortura, os assassinatos, os exílios forçados económicos ou políticos, as repressões, as censuras, o empobrecimento de operários e camponeses, a falta de liberdade de organização dos trabalhadores/as e dos camponeses, a política de promoção do isolamento e da ignorância. A justiça deve chegar aos seus atores, promotores e cúmplices. Devemos continuar a empurrar para banir muitas de suas perversões que continuam vigentes, e construir a pátria sonhada que imaginaram os /as mártires.
É isso mesmo. Porque as pessoas o artigo ou, assassinadas, calumniadas, isoladas e execradas pelo regime despótico não somente reclamavam a liberdade de expressão. Reivindicavam um Paraguai que a canção “a Minha pátria sonhada” de Carlos Miguel Giménez e Agostinho Barboza descreve e que todos e todas nós cantamos, ou seja, letras sobre as quais a imensa maioria paraguaios e paraguaias estamos de acordo.
Os efeitos de explicar melhor, tomemos de empréstimo alguns de seus versos:
Um país “livre de amarras nativas ou estranhas”, onde os nossos governantes falam de frente com o povo, dando as costas para as potências e as grandes multinacionais, entre elas as do agronegócio; onde os paraguaios, que são ricos ou politicamente poderosos não possam fazer aprovar leis à sua medida e conveniência, onde a política internacional não é base para quem vendemos mais de carne ou de soja mais
“Mantendo em seu implica a peça de futuro”, onde já não se referem à infância e à juventude com o precioso complemento de “futuro da pátria”, mas como o “presente da pátria”, investindo em ambas, agora, em educação, não somente para o mercado, mas, acima de tudo, para viver em sociedade, todos e todas, como cidadãos e cidadãs, respeitando e fazendo-se respeitar. Um país onde os únicos privilegiados sejam todos os meninos e meninas e os e as jovens.
“Pátria que não tenha filhos e filhas desgraçados” que passam fome, que não têm aposentadoria, que não têm trabalho, que emigram à procura de fora a oportunidade que aqui as elites lhes negam.
“Nem mestres insaciados que usurpen seus bens”, como continua acontecendo hoje. Podem continuar procurando, porque a cobiça lhes é inerente, mas já não o farão de forma impune.
“Povo soberano, por sua democracia”, onde se tenha o voto em uma mão e o pão na outra. Onde os cargos eletivos já não os ocupem os ricos e os componentes da narcopolítica, por culpa de sistemas eleitorais cúmplices, como o da “opção preferencial”.
“Pomar com fragrância de foros humanos”. Ou seja, um país onde se respeitem os direitos humanos, que não somente não se torture nem se meta preso a quem disiente, mas onde todo mundo gozo de seus direitos econômicos, sociais, ambientais e culturais; onde já não haja demissões de pessoas que se organiza em sindicato; onde já não exijam filiação para trabalhar.
“Rico em homens (e mulheres) saudáveis/as de alma e coração”. Onde o “cada um por si” for trocado por “salvémonos todos e todas juntos”.
“Com crianças alegres e mães felizes”, onde já não vejamos a crianças pobres, em geral, e meninos e meninas indígenas em particular, pedindo esmola nas esquinas ou sacrificando seus cuerpecitos no repugnante altar de pedofilia. Onde milhares de mães que são chefes de família encontram um apoio real. Onde já não haja cada vez mais jovens.
“Pátria sem muralhas para o pensamento, livre como o vento, sem medo de metralha” , ou sem medo de um poder judiciário dominado por um setor político.
“Onde alegrem trinados de são libertários os proletários e os camponeses”, em um país onde há liberdade sindical, negociação coletiva, onde os direitos trabalhistas e sociais já não lhes chamem de privilégios, enquanto os ladrões que esvaziam o país tornam-se impunemente ricos. Onde a terra seja de quem trabalha. Onde haja oportunidades de emprego, onde o pequeno e o médio empreendedor possibilidades. Onde o que se ganha trabalhando honestamente seja suficiente para preencher todas as suas necessidades e progredir.
Por estes sonhos se sacrificaram os/as mártires da tirania. Foram assassinados, torturados, exilados, presos, confinados, perseguidos. A melhor homenagem a eles e elas é continuar a lutar por esses objetivos.
Mas a pergunta é: o que estamos fazendo?
A resposta é: o que fazemos, em parte, mas o que fazemos é altamente insuficiente.
Por que?
Porque nos distraem e não colocamos em debate as medidas e políticas estratégicas que podem nos fazer sair da pobreza e o atraso.
Tomemos exemplos: É imprescindível lutar contra o nepotismo e a corrupção. A agenda de debate a coloca sempre o partido colorado, apoiado pelo opo-oficialismo e o contraponto fazem os grandes meios de comunicação, que defendem os interesses de seus proprietários.
Sabemos que é necessário combater todas as formas de corrupção e, entre elas, o nepotismo, mas esse debate não é suficiente.
Tomemos como exemplo o último anúncio do Poder Executivo sobre o programa “fome zero” nas escolas e façamo-nos a seguinte pergunta:
É somente a infância em idade escolar a que passa fome no Paraguai? Não! As próprias estatísticas oficiais nos dizem que 25 por cento da população paraguaia não ingere o mínimo necessário de alimentos.
Outra pergunta: Se vai alimentar somente aqueles que vão para a escola e deixar que o resto de seus familiares continuem passando fome?
Se o menino ou menina passa fome, é porque a sua família (e não só ele ou ela) não está sendo alimentado corretamente, porque não tem renda, porque está no setor informal, porque os seus pais estão desempregados, ou porque têm emprego e não ganham sequer um salário mínimo.
Mas há mais ainda. Para financiar a alimentação escolar, suspendem a assistência às municipalidades e províncias. Isso é chamado de desvestir um santo para vestir outro. E, de passagem, concentram o poder econômico, fazendo com que a descentralização seja uma quimera. A desculpa é que há corrupção nesse segmento. Ninguém vai preso, mas tudo serve como desculpa para centralizar o poder económico e o poder político cada vez mais.
Ninguém menciona que os ricos e as empresas que mais ganham dinheiro, devem pagar impostos. Nem é citado que 45 por cento dos IRL são evadidos e ninguém é preso por isso.
Continuamos fazendo perguntas que nos ajudam a análise:
Os mártires do déspota se sacrificaram para que em nosso país existe somente uma relativa liberdade de expressão com sérios riscos de sofrer o lawfare ou garrote judicial e para que os sojeros, os exportadores de carne e os bancos e financeiras continuem enriquecendo sem limites, sem pagar impostos e sem colaborar com o verdadeiro desenvolvimento do país?
Evidentemente que não. Os mártires da ditadura se sacrificaram por um país democrático, inclusivo, com igualdade de oportunidades, com a democracia, não apenas representativa, mas participativa, o direito de a classe operária a se organizarem livremente em sindicatos, onde as terras indígenas sejam respeitadas, com a segurança social para todos e todas, o direito dos camponeses a um preço justo por seus produtos e a uma terra de exploração, onde não se sacrifique o meio ambiente para tornar mais ricos os ricos piorando as condições de vida dos pobres, onde a pequena e média empresa tenha lugar, gerando mais empregos.
Tudo isto há que debater para superar o modelo imposto de fora, com a colaboração dos ricos locais, do Partido Colorado e do opo-oficialismo. Entre eles tiverem sido distribuídas bolo.
-Uns dizem: nós teremos o controle dos negócios financeiros, a exportação de soja e de carne. Com a ajuda de vocês, vamos fazer as leis para ganharmos a maior quantidade de dinheiro. Nada de criar novos setores que nos levem a concorrência. Nada de cobrar impostos. Nada de sindicatos ou direitos laborais e sociais. Nada de regras ambientais.
-O partido oficialista e o opo-oficialismo dizem: Nós trabalhamos para que vocês ganhem muito. Nada de impostos e as regras para as empresas. Nada de sindicatos ou direitos trabalhistas. Em troca, não nos exijam transparência na gestão da coisa pública. O setor público é nosso e vamos definir as práticas que nós queremos. Será o nosso campo de caça. Manteremos o controle dos três poderes do Estado para benefício dos dois grupos.
É a esta aliança perversa a que há que vencer. Porque eles são os que decidem o que vai debater, adiando a urgência de discussões estratégicas que podem levar nosso país a um rumo diferente.
Portanto, a melhor homenagem aos mártires da tirania stronista é lutar contra isso que continua a ser herança do autoritarismo, imaginar e lutar por uma sociedade alternativa, para o qual deve ser as pessoas e suas organizações, as quais devem colocar sobre a mesa os temas a debater, a nível nacional e não simplesmente seguir a agenda imposta pelo Partido Colorado e o opo-oficialismo, de um lado, e os grandes meios de comunicação, do outro lado.
O autor, é paraguaio de nascimento, foi dirigente sindical em seu país, foi secretário-geral da Confederação Sindical das Américas e Secretário-Geral Adjunto da Confederação Sindical Internacional. Em setembro de 2023, publicou o livro “Sul Global: custa caro ser pobre”.