O Relatório de Desenvolvimento Humano divulgado em março de 2024 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) afirma que, enquanto a humanidade desfruta de
“… riqueza e tecnologia exorbitantes – inimagináveis para nossos ancestrais – que poderiam impulsionar escolhas ousadas e necessárias para a paz e para o desenvolvimento humano sustentável e inclusivo”, nos encontramos “… sempre à beira de um abismo, um castelo de cartas socioecológico… com violações em cascata dos direitos humanos e massacres de pessoas em suas casas e locais de reunião social e em hospitais, escolas e abrigos”.
De acordo com um relatório da Lancet publicado em fevereiro de 2024, nas últimas três décadas, a taxa de obesidade quadruplicou entre as crianças e dobrou entre os adultos. A prevalência combinada de baixo peso e obesidade em adultos aumentou em 162 países.
Ao mesmo tempo, o UNICEF, com dados para o ano de 2022, afirma que 149 milhões de crianças menores de cinco anos sofrem de desnutrição crônica e 45 milhões sofrem de desnutrição aguda. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), 43,2 milhões de pessoas passam fome na América Latina e no Caribe. Em 2022, 247,8 milhões de pessoas na região sofreram insegurança alimentar moderada ou grave.
Além disso, globalmente, aproximadamente 13% dos alimentos produzidos são perdidos entre a colheita e o varejo, enquanto cerca de 17% da produção total de alimentos é desperdiçada em nível doméstico.
A desnutrição, a obesidade e o desperdício de alimentos coexistem neste mundo, um sinal claro da desigualdade e da exclusão predominantes.
Embora, como aponta o relatório do PNUD mencionado anteriormente, a tecnologia e a capacidade de produção de alimentos permitiriam atender a todas as pessoas do planeta sem problemas, a realidade é que uma parte da população tem acesso a muitos bens e outra parte a muito pouco ou quase nada.
Portanto, é apropriado perguntar o que causa essa realidade ou, pelo menos, tentar encontrar algumas linhas explicativas.
É importante observar que a tecnologia por si só não pode mudar a realidade, pois seu desenvolvimento e aplicação dependem de fatores políticos, econômicos e sociais.
De fato, a tecnologia, seu acesso e distribuição também fazem parte da desigualdade predominante no planeta.
Isso é claramente observado no mundo do trabalho, onde grande parte das mudanças regulatórias que ocorreram nos últimos tempos é de natureza neoliberal, desregulamentando as proteções estabelecidas pela legislação trabalhista, apesar dos avanços tecnológicos digitais que melhorariam as condições de trabalho.
Pelo contrário, as novas tecnologias são transformadas em ferramentas para limitar direitos, em vez de liberar tempo e melhorar as condições de trabalho, muitas vezes envoltas em um pacote de falsa independência, autonomia e geração de renda, negando a própria existência de relações de dependência.
Para o PNUD, entre as causas dessa realidade, o relatório enfatiza que o “…dogma metastático da não intervenção mascara o ataque aos bens comuns econômicos e ecológicos…” com políticas e instituições – inclusive aquelas que administraram mal a dinâmica do mercado globalizado – que preferem o “eu” ao “nós”.
A “não-intervenção” do Estado e o individualismo extremo são sinais claros da intenção de desmantelar as estruturas do chamado estado de bem-estar social, que, embora em muitos lugares nunca tenha se firmado de fato, tem sido predominante nos países centrais há décadas.
Em contraste com o que se imaginava em meados do século XX, o desenvolvimento capitalista parece não ter espaço para todas as pessoas e todas as culturas se quiser continuar a gerar e aumentar o lucro de forma crescente e incessante.
Portanto, a estrutura normativa, institucional, social e cultural organizada em torno do conceito de Estado de Bem-Estar Social é totalmente disfuncional para os interesses hegemônicos, razão pela qual se busca eliminá-la, seja por meios democráticos ou por outros meios autoritários e violentos.
Hoje, o que vemos e ouvimos quase todos os dias, de vários interlocutores, é um questionamento do Estado, das políticas públicas e da proteção dos direitos, com ações concretas que estão na contramão dos padrões reconhecidos nos instrumentos internacionais e também nas normas regionais e até nacionais.
Esse é o caso dos direitos trabalhistas, tanto individuais quanto coletivos, que sempre tiveram opositores, geralmente do setor empresarial, com o argumento de que são obstáculos ou âncoras para o desenvolvimento econômico.
Algo semelhante pode ser visto com os constantes ataques aos direitos das mulheres com base no chavão da “ideologia de gênero”, cujo conceito nunca é muito claro, mas que, no final, acaba sendo uma negação dos direitos das mulheres e contra a diversidade sexual, etc.
Esse também é o caso dos povos e comunidades indígenas.
Após o notável progresso alcançado em nível global e regional desde 1989, que no caso da América Latina também se expressou em leis e constituições, na prática o presente mostra um notável retrocesso, especialmente na apropriação de suas terras e recursos naturais, mesmo diante de uma legislação protetora.
Trata-se de uma clara reafirmação de três características fundamentais do sistema capitalista: patriarcalismo, colonialismo e exploração econômica ilimitada.
Como se depreende implicitamente do relatório de desenvolvimento humano supracitado, não se trata mais de defeitos ou limitações do sistema econômico, social e político dominante: a desigualdade e a exclusão de um grande número de pessoas são características que foram provocadas, fazem parte do sistema tal como ele pretende se consolidar.
É essencial partir dessas premissas para mudar a situação atual.
O próprio documento do PNUD ensaia algumas propostas a esse respeito, que, embora não abordem as causas profundas dos problemas detectados, não deixam de ser, em forma e conteúdo, nada comuns considerando a agência que as manifesta.
Uma das ideias é reivindicar dos Estados e, em geral, daqueles que têm a capacidade de influenciar, a chamada “… propriedade comum”, que consiste em “… distribuir equitativamente o poder de definir metas coletivas, as responsabilidades de persegui-las e os resultados esperados… com… ênfase na formação de normas sociais que cultivem o valor da realização coletiva e do comportamento cooperativo”.
Outra ideia apresentada é a de “…construir uma arquitetura do século XXI para bens públicos globais… que “…teria como objetivo fazer transferências dos países ricos para os mais pobres que promovam objetivos que beneficiem todos os países. Todos os países têm a oportunidade de opinar e contribuir. Dessa forma, essa terceira via é inerentemente multilateral”.
O Relatório também sugere outras medidas, como novos mecanismos financeiros para complementar a ajuda humanitária e a assistência tradicional ao desenvolvimento para países de baixa renda; e a redução da polarização política por meio de novas abordagens de governança que se concentram em aumentar a voz dos cidadãos nas deliberações e combater a desinformação.
Além da viabilidade e da relevância dessas recomendações, o que é importante destacar é que a ONU, diante do abismo em que o mundo se encontra, está buscando maneiras de sair do liberalismo extremo, do individualismo e da promoção da lógica belicista que atualmente prevalece no discurso majoritário.
Isso, por si só, já é uma contribuição a ser levada em conta quando se analisa a realidade atual e o futuro da humanidade.