No dia 19 de setembro de 2025, na cidade de Montevidéu, Uruguai, na sede da Instituição Nacional de Direitos Humanos e Defensoria do Povo, foi realizado o ato de lançamento da chamada “Pesquisa Contínua de Identidade Indígena”, promovida pela organização local Derecho Indígena.
Trata-se de uma ferramenta criada para visibilizar e reconhecer a identidade indígena no país, fornecendo dados e testemunhos que fortalecem a memória, a cultura e a construção de políticas públicas mais inclusivas.
Durante vários dias, de forma voluntária e acessando o portal https://www.derechoindigenauy.com/encuesta-continua-de-identidad-indigena, é possível responder a dois formulários: um voltado para pessoas uruguaias que se identificam como indígenas e outro para pessoas que, vivendo no Uruguai, se consideram parte de coletivos indígenas originários de outros lugares.
A pesquisa começa com a seguinte afirmação:
“Durante muito tempo, outros contaram a nossa história. Deram-nos nomes, apagaram-nos dos mapas. Hoje, podemos contar a nós mesmos.”
Esclarece-se que não se trata de um censo oficial, mas sim de:
“Uma forma de nos reunirmos, de contarmos a nossa história, de dizermos ao país e ao mundo que estamos aqui.”
Em relação às pessoas não originárias do Uruguai, mas que possuem um sentimento de pertencimento a algum povo indígena, o formulário inclui a seguinte introdução:
“Queremos te conhecer, te reconhecer e caminhar juntos na defesa de todos os direitos indígenas, também neste novo território.”
A pesquisa não solicita apenas dados pessoais básicos, mas busca compreender muitos outros aspectos da vida cotidiana e da situação das pessoas indígenas, como identidade, línguas, memória, cultura, direitos, representatividade, espaços sagrados, educação, trabalho, moradia, saúde, além de aspectos específicos relacionados à infância e à terceira idade.
A iniciativa apresenta múltiplos aspectos relevantes.
Embora o Uruguai tenha realizado seu último censo em 2023, com divulgação dos principais resultados quase um ano depois — revelando que cerca de 6% da população se autoidentifica como indígena — nenhuma outra informação foi divulgada em relação aos povos e pessoas indígenas do país.
Em outras palavras, a falta de informação sobre esse coletivo ainda é uma realidade a ser transformada, e por isso esta iniciativa certamente permitirá obter dados valiosos que hoje não estão disponíveis.
Outro ponto notável é que a iniciativa foi promovida, concebida e implementada diretamente por integrantes da comunidade indígena, sem qualquer intermediação do Estado ou de organismos internacionais.
As variáveis incluídas refletem os interesses e visões próprias desses coletivos, como por exemplo aspectos ligados a lugares sagrados ou medicina ancestral — temas que dificilmente são considerados quando ferramentas desse tipo são elaboradas por instituições estatais.
Também merece destaque a sensibilidade dos organizadores ao incluírem uma atenção especial às pessoas indígenas não nascidas no Uruguai, reconhecendo que sua cultura viaja com elas e não fica limitada às fronteiras administrativas.
A iniciativa coincide temporalmente com duas publicações que merecem ser consideradas:
- “Os desafios da inclusão estatística dos povos indígenas e afrodescendentes na América Latina e no Caribe”, da Associação Latino-Americana de População (ALAP);
- A adoção da Opinião nº 18 do Mecanismo de Especialistas das Nações Unidas sobre o direito dos povos indígenas à informação, sua coleta e desagregação.
A primeira publicação revisa o percurso dos países da região na incorporação de variáveis sobre identidades étnicas nos censos nacionais — para povos indígenas desde os anos 1990 e para populações afrodescendentes a partir de 2010.
A publicação informa que, no censo populacional e de habitação do ano 2000, dezesseis países incluíam perguntas sobre povos indígenas, mas apenas nove coletavam informações sobre afrodescendentes. Na rodada de 2010, esse número subiu para dezesseis países e continuou melhorando na rodada de 2020.
A demanda por visibilidade estatística de afrodescendentes e indígenas ganhou força com a adoção da Convenção nº 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais em 1989, a Conferência Mundial contra o Racismo (Durban, 2001) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007).
Além disso, em 2013 foi assinado o chamado Consenso de Montevidéu, durante a Conferência Regional sobre População e Desenvolvimento da América Latina e do Caribe, que inclui uma série de medidas prioritárias direcionadas aos povos indígenas e às populações afrodescendentes, duas das quais abordam especificamente o direito à informação.
Hoje, não há dúvidas quanto ao consenso internacional sobre a adoção do critério de autoidentificação para a definição da população afrodescendente e indígena em fontes de dados. Isso está relacionado ao exercício efetivo do direito de se autodefinir como pertencente a um povo, ao desenvolvimento da consciência individual de pertencimento e ao reconhecimento dessa identidade pelo próprio povo.
Esses avanços conceituais, no entanto, não podem ignorar que a grande diversidade étnica da região e o extenso processo de mestiçagem geraram identidades fluidas e mistas, que nem sempre se encaixam facilmente em categorias rígidas e estáticas. Além disso, as pessoas geralmente possuem múltiplas identidades, que precisam ser reconhecidas.
Após a análise de diversos casos nacionais, o documento conclui que, embora haja avanços significativos em comparação com décadas anteriores, ainda há muito a ser feito para que as ferramentas estatísticas e censitárias consigam refletir melhor a diversidade cultural existente.
Por sua vez, o Mecanismo de Especialistas da ONU, ao final de um extenso relatório que abrange múltiplos países, adotou a Opinião nº 18, na qual afirma:
“Os Estados devem coletar e desagregar dados relativos aos Povos Indígenas com sua participação plena e efetiva, respeitando seu direito à autodeterminação e autogoverno.”
O item 4 da Opinião estabelece:
“A coleta, o processamento e a governança dos dados indígenas devem seguir métodos apropriados aos Povos Indígenas, e estes devem ter acesso aos dados coletados e participar de sua análise e interpretação de maneira que respeite seus conhecimentos tradicionais, sua cultura e seus sistemas de tomada de decisão. (…)
Os sistemas estatais de coleta e armazenamento de dados não devem impedir que os Povos Indígenas elaborem seus próprios mecanismos e metodologias de coleta de dados apropriadas cultural e eticamente.”
A pesquisa lançada no dia 19 de setembro no Uruguai está alinhada com esses conceitos, já que foi desenhada e é implementada pelas próprias organizações indígenas, sem participação do Estado — que, ao mesmo tempo, também não impediu sua realização.
Será necessário acompanhar essa iniciativa e conhecer seus resultados para avaliar adequadamente seu alcance e eventuais ações futuras relacionadas aos dados que forem coletados.