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Foto: vecteezy

Você pode dizer isso. Sem dados, não há políticas públicas

02 outubro, 2025

No dia 19 de setembro de 2025, na cidade de Montevidéu, Uruguai, na sede da Instituição Nacional de Direitos Humanos e Defensoria do Povo, foi realizado o ato de lançamento da chamada “Pesquisa Contínua de Identidade Indígena”, promovida pela organização local Derecho Indígena.

Trata-se de uma ferramenta criada para visibilizar e reconhecer a identidade indígena no país, fornecendo dados e testemunhos que fortalecem a memória, a cultura e a construção de políticas públicas mais inclusivas.

Durante vários dias, de forma voluntária e acessando o portal https://www.derechoindigenauy.com/encuesta-continua-de-identidad-indigena, é possível responder a dois formulários: um voltado para pessoas uruguaias que se identificam como indígenas e outro para pessoas que, vivendo no Uruguai, se consideram parte de coletivos indígenas originários de outros lugares.

A pesquisa começa com a seguinte afirmação:

“Durante muito tempo, outros contaram a nossa história. Deram-nos nomes, apagaram-nos dos mapas. Hoje, podemos contar a nós mesmos.”

Esclarece-se que não se trata de um censo oficial, mas sim de:

“Uma forma de nos reunirmos, de contarmos a nossa história, de dizermos ao país e ao mundo que estamos aqui.”

Em relação às pessoas não originárias do Uruguai, mas que possuem um sentimento de pertencimento a algum povo indígena, o formulário inclui a seguinte introdução:

“Queremos te conhecer, te reconhecer e caminhar juntos na defesa de todos os direitos indígenas, também neste novo território.”

A pesquisa não solicita apenas dados pessoais básicos, mas busca compreender muitos outros aspectos da vida cotidiana e da situação das pessoas indígenas, como identidade, línguas, memória, cultura, direitos, representatividade, espaços sagrados, educação, trabalho, moradia, saúde, além de aspectos específicos relacionados à infância e à terceira idade.

A iniciativa apresenta múltiplos aspectos relevantes.

Embora o Uruguai tenha realizado seu último censo em 2023, com divulgação dos principais resultados quase um ano depois — revelando que cerca de 6% da população se autoidentifica como indígena — nenhuma outra informação foi divulgada em relação aos povos e pessoas indígenas do país.

Em outras palavras, a falta de informação sobre esse coletivo ainda é uma realidade a ser transformada, e por isso esta iniciativa certamente permitirá obter dados valiosos que hoje não estão disponíveis.

Outro ponto notável é que a iniciativa foi promovida, concebida e implementada diretamente por integrantes da comunidade indígena, sem qualquer intermediação do Estado ou de organismos internacionais.

As variáveis incluídas refletem os interesses e visões próprias desses coletivos, como por exemplo aspectos ligados a lugares sagrados ou medicina ancestral — temas que dificilmente são considerados quando ferramentas desse tipo são elaboradas por instituições estatais.

Também merece destaque a sensibilidade dos organizadores ao incluírem uma atenção especial às pessoas indígenas não nascidas no Uruguai, reconhecendo que sua cultura viaja com elas e não fica limitada às fronteiras administrativas.

A iniciativa coincide temporalmente com duas publicações que merecem ser consideradas:

  1. “Os desafios da inclusão estatística dos povos indígenas e afrodescendentes na América Latina e no Caribe”, da Associação Latino-Americana de População (ALAP);
  2. A adoção da Opinião nº 18 do Mecanismo de Especialistas das Nações Unidas sobre o direito dos povos indígenas à informação, sua coleta e desagregação.

A primeira publicação revisa o percurso dos países da região na incorporação de variáveis sobre identidades étnicas nos censos nacionais — para povos indígenas desde os anos 1990 e para populações afrodescendentes a partir de 2010.

A publicação informa que, no censo populacional e de habitação do ano 2000, dezesseis países incluíam perguntas sobre povos indígenas, mas apenas nove coletavam informações sobre afrodescendentes. Na rodada de 2010, esse número subiu para dezesseis países e continuou melhorando na rodada de 2020.

A demanda por visibilidade estatística de afrodescendentes e indígenas ganhou força com a adoção da Convenção nº 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais em 1989, a Conferência Mundial contra o Racismo (Durban, 2001) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007).

Além disso, em 2013 foi assinado o chamado Consenso de Montevidéu, durante a Conferência Regional sobre População e Desenvolvimento da América Latina e do Caribe, que inclui uma série de medidas prioritárias direcionadas aos povos indígenas e às populações afrodescendentes, duas das quais abordam especificamente o direito à informação.

Hoje, não há dúvidas quanto ao consenso internacional sobre a adoção do critério de autoidentificação para a definição da população afrodescendente e indígena em fontes de dados. Isso está relacionado ao exercício efetivo do direito de se autodefinir como pertencente a um povo, ao desenvolvimento da consciência individual de pertencimento e ao reconhecimento dessa identidade pelo próprio povo.

Esses avanços conceituais, no entanto, não podem ignorar que a grande diversidade étnica da região e o extenso processo de mestiçagem geraram identidades fluidas e mistas, que nem sempre se encaixam facilmente em categorias rígidas e estáticas. Além disso, as pessoas geralmente possuem múltiplas identidades, que precisam ser reconhecidas.

Após a análise de diversos casos nacionais, o documento conclui que, embora haja avanços significativos em comparação com décadas anteriores, ainda há muito a ser feito para que as ferramentas estatísticas e censitárias consigam refletir melhor a diversidade cultural existente.

Por sua vez, o Mecanismo de Especialistas da ONU, ao final de um extenso relatório que abrange múltiplos países, adotou a Opinião nº 18, na qual afirma:

“Os Estados devem coletar e desagregar dados relativos aos Povos Indígenas com sua participação plena e efetiva, respeitando seu direito à autodeterminação e autogoverno.”

O item 4 da Opinião estabelece:

“A coleta, o processamento e a governança dos dados indígenas devem seguir métodos apropriados aos Povos Indígenas, e estes devem ter acesso aos dados coletados e participar de sua análise e interpretação de maneira que respeite seus conhecimentos tradicionais, sua cultura e seus sistemas de tomada de decisão. (…)
Os sistemas estatais de coleta e armazenamento de dados não devem impedir que os Povos Indígenas elaborem seus próprios mecanismos e metodologias de coleta de dados apropriadas cultural e eticamente.”

A pesquisa lançada no dia 19 de setembro no Uruguai está alinhada com esses conceitos, já que foi desenhada e é implementada pelas próprias organizações indígenas, sem participação do Estado — que, ao mesmo tempo, também não impediu sua realização.

Será necessário acompanhar essa iniciativa e conhecer seus resultados para avaliar adequadamente seu alcance e eventuais ações futuras relacionadas aos dados que forem coletados.